Jurídico-conceitualmente, o termo ‘boa-fé’ designa[1] aquela conduta praticada sem intenção de lesar alguém ou compromisso/obrigação assumidos. Já o termo ‘má-fé’ designa[2] intenção de causar prejuízo ou distorcer a verdade.
Portanto, de largada, já se tem à primeira vista o que distingue tais termos em si: a intenção!
A grande questão é que, quando transportados para o núcleo dos deveres e direitos dos contratantes dentro do contrato de seguro, como modalidade de negócio jurídico, essa questão semântica, linguística, assume outros contornos e, quando mal aplicada e interpretada, no contexto legal, gera consequências distorcidas e prejudiciais aos contratantes.
A título de curiosidade, o nosso Código Civil (‘compilado mãe’ das obrigações civis) reporta o termo ‘boa-fé’ 56 vezes para 35 vezes do termo ‘má-fé’, equivalente a 2/3 para 1/3. É dizer, numa análise bem ordinária (comum, geral), que isso faz sentido, uma vez que o termo boa-fé é inerente à conduta nata, esperada do ‘homem-médio’, em contrapartida ao termo má-fé, que exige um ‘plus’ volitivo na conduta, intencional, de causar o prejuízo ao outro.
À vista disso, quer nos parecer que deveria estar (e infelizmente não está) muito claro que, na relação do contrato de Seguro, sobremaneira, a ausência de informação prestada de forma correta e coerente com a verdade pelo Segurado em uma declaração de saúde, por exemplo, ou em qualquer outro momento da relação negocial, deveria corresponder à falta de observância da boa-fé (objetiva[3]) e não à ocorrência de má-fé. Percebem?
Respeitadas opiniões em contrário, como dito no início deste texto, o que aparentemente pode passar despercebido por muitos (inclusive, os julgadores), como um jogo semântico, compromete, em nosso entender, gravemente a correta análise das premissas do contrato de seguro e, para muito além e ao mesmo tempo antes disso, compromete a correta compreensão e aplicação da parte principiológica insculpida no próprio Código Civil, já que a boa-fé, assim é considerada: um princípio.
Ora, o art. 765 do CC[4] chega a ser redundante ao dispor que as condutas que norteiam tanto segurado quanto segurador devem ser dentro da “mais estrita boa-fé e veracidade” (salientamos), vindo o art. 766 do CC[5] na esteira, em complemento, para prever que, na ausência desta situação (ou seja, de atitudes dentro da boa-fé, leia-se, de conduta leal, honesta esperada), o segurado perde o direito à garantia contratada e ainda ficará obrigado ao prêmio vencido.
O parágrafo único do art. 766, já como um desdobrando das regras dos dois ‘caputs’ citados (765 e 766), em que aparece o termo ‘má-fé’, é contextualizado como uma situação piorada, extremada em que, nessa hipótese, se caracterizada, o segurado ainda ficaria onerado com o prêmio vencido após o sinistro, sem prejuízo da perda do direito à garantia, obviamente, já anteriormente prevista na cabeça do mesmo artigo.
Ou seja, não nos parece duvidosa a intenção do legislador em qualificar a conduta do segurado que falta com a verdade na composição do contrato de seguro (bem como na sua execução), como inerente ‘à ausência de conduta leal esperada’, em outras palavras, ‘ausência de boa-fé’ e não, e muito diferente, tipificada como ‘de má-fé’.
Ao enquadrar a interpretação da conduta dos contratantes (segurado e segurador) na insígnia ‘má-fé’, de modo equivocado, condiciona-se, como atitude padrão interpretativa o elemento volitivo de causar prejuízo ao outro contratante, como regra do negócio e, bem assim, tomar como regra a obrigação do contratante de provar a “intenção de prejudicar” do contratado (e vice-versa), o que sabemos todos, é uma tarefa senão impossível, muito difícil, além, como demonstrado, de desvirtuar a mens legis.
E pior, pautar a regra no padrão do desonesto e não do honesto, conduta esperada (ou que ao menos deveria ser).
Portanto, se o segurado é questionado, a título de exemplo, em uma seguro de vida, numa declaração de saúde: “é portador de diabetes”?, “é portador de doença cardíaca”? e ele, mesmo sabedor da sua condição de doente destas nomenclaturas, tendo a opção ostensiva de dizer “sim”, diz “não”, data máxima vênia, não há que se falar em “dever do Segurador em provar a má-fé do segurado”, senão, a detecção direta de que o segurado deixou a honestidade de lado nesse momento, faltou-lhe a boa-fé esperada na conduta e, diante dessa ausência de boa-fé (e não presença de má-fé), é que tem incidência dos arts. 765 e 766 do Código Civil.
Nesse aspecto, inclusive, entendemos que a Súmula 609, do STJ[1], com todo respeito, pecou e muito, ao final, ao condicionar e, assim, reforçar o equívoco em debate, quando disciplina a obrigação do Segurador em “demonstrar a má-fé do segurado”.
O que salva, em muitos casos, pela nossa experiência e vivência no tema, é que a par da questão semântica que nos inspirou a este tema, muitos Tribunais, a despeito disso, aplicam a regra da “ausência da boa-fé”, ainda que designem isso como sinônimo de má-fé.
Acreditamos que essa ‘luta’ interpretativa pela aplicação correta do direito positivo, travada diariamente pelo operador do direito, é constante e incansável. As vozes precisam ecoar na dialética processual do dia-a-dia, na defesa racional e coerente do direito já existente e assim, seguimos defendendo e acreditando que esta é a única via de transformação, tanto da jurisdição quanto das relações sociais, por consequência, propriamente ditas. E é nesse passo e crença que nós, do Carvalho Nishida, seguimos diariamente!
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[1] 3. Jur. Conduta leal, sem intenção de lesar terceiros ou descumprir o compromisso ou a obrigação assumida; fonte: https://aulete.com.br/boa-f%C3%A9.
[2] Intenção de causar dolo ou prejuízo, de distorcer a verdade etc.; fonte: https://aulete.com.br/m%C3%A1-f%C3%A9
[3] Como por muitos é mencionada no sentido contrário à subjetividade envolvida na expressão antagônica ‘ma-fé’, que exige, conceitualmente como visto, caráter intencional, subjetivo, portanto.
[4] Art. 765. O segurado e o segurador são obrigados a guardar na conclusão e na execução do contrato, a mais estrita boa-fé e veracidade, tanto a respeito do objeto como das circunstâncias e declarações a ele concernentes.
[5] Art. 766. Se o segurado, por si ou por seu representante, fizer declarações inexatas ou omitir circunstâncias que possam influir na aceitação da proposta ou na taxa do prêmio, perderá o direito à garantia, além de ficar obrigado ao prêmio vencido.
Parágrafo único. Se a inexatidão ou omissão nas declarações não resultar de má-fé do segurado, o segurador terá direito a resolver o contrato, ou a cobrar, mesmo após o sinistro, a diferença do prêmio.
[6] Súmula 609: A recusa de cobertura securitária, sob a alegação de doença preexistente, é ilícita se não houve a exigência de exames médicos prévios à contratação ou a demonstração de má-fé do segurado