Em 06/01/2022, foi publicada no Diário Oficial da União a Lei 14.297/2022, que “dispõe sobre medidas de proteção asseguradas ao entregador que presta serviço por intermédio de empresa de aplicativo de entrega durante a vigência, no território nacional, da emergência de saúde pública decorrente do coronavírus responsável pela covid-19”[1].
A lei foi sancionada pela Presidência da República com vetos parciais, sendo que, entre outras medidas, determina que, durante a pandemia, a empresa de aplicativo deve contratar seguro, sem franquia, em benefício do entregador, para cobrir acidentes que ocorram durante o período de retirada e entrega de produtos[2].
É curioso que a lei, em que pese o intuito da norma ser o de proteger os entregadores enquanto perdurar o período de pandemia, sabidamente uma doença, menciona apenas a contratação de cobertura para acidentes ocorridos durante a retirada e a entrega de produtos. Ou seja, no texto expresso em lei constaria apenas a obrigatoriedade de contratação de cobertura para acidentes pessoais, o que não abrangeria invalidez por doença ou morte por qualquer causa.
Entretanto, o projeto que deu origem a essa lei (PL 1.665/2020), relatado no Senado por Randolfe Rodrigues (Rede-AP), previa em sua redação original: “Art. 3º A empresa de aplicativo de entrega deve contratarem benefício do entregador a ela vinculado seguro contra acidentes e por doença contagiosa.”[3] Redação esta mais abrangente e que garantiria cobertura para os casos de invalidez ou morte por doença, o que incluiria aqueles decorrentes da contaminação por coronavírus.
Porém, como aplicadores do direito, em que pese a aparente “falha” no texto aprovado e publicado, devemos observar que a interpretação da norma deve atender aos fins sociais a que ela se dirige e às exigências do bem comum, ou seja, essa omissão não pode ser utilizada para excluir a obrigatoriedade da contratação também de cobertura para invalidez e morte decorrentes de doença, fim principal da norma (proteção durante o período de pandemia).
O iFood, por exemplo, conforme notícias divulgadas antes mesmo da publicação da lei em comento[4], seria uma das empresas a já contratar este tipo de seguro para acidentes pessoais junto a MetLife, com cobertura para morte e invalidez permanente total/parcial por acidente[5], sendo que, durante a pandemia, foi divulgada a ampliação de um seguro de vida com cobertura para Covid-19[6], porém, apenas abrangendo o risco morte e assistência funeral[7], o que demandaria adaptações com a entrada em vigor da lei.
Outro ponto a ser levantado é que a lei menciona “medidas de proteção asseguradas ao entregador que presta serviço por intermédio de empresa de aplicativo de entrega”, assim não se limita aos serviços de entrega de comida (delivery), mas abrange qualquer outro tipo de entrega de mercadoria, sendo suficiente, para a sua incidência, que o aplicativo se destine a essa intermediação de serviços de entrega ao consumidor.
Por fim, o descumprimento da lei pode levar a aplicação de advertência e de multa administrativa, sendo que não houve fixação de prazo expresso para essa adequação, motivo pelo qual as empresas sujeitas a sua incidência deverão se adequar o quanto antes.
Nós, da Carvalho Nishida, sabemos da importância de interpretar a lei com base na jurisprudência e do fim social a que se destina, a fim de não incorrer em punições administrativas ou judicialização por inobservância das exigências legais e das coberturas obrigatórias, pois, mais do que conhecimento jurídico e processual, necessária a adequação ao contexto atual e social.
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[1] https://www.in.gov.br/en/web/dou/-/lei-n-14.297-de-5-de-janeiro-de-2022-372163123#:~:text=Disp%C3%B5e%20sobre%20medidas%20de%20prote%C3%A7%C3%A3o,coronav%C3%ADrus%20respons%C3%A1vel%20pela%20covid%2D19.
[2] “Art. 3º A empresa de aplicativo de entrega deve contratar seguro contra acidentes, sem franquia, em benefício do entregador nela cadastrado, exclusivamente para acidentes ocorridos durante o período de retirada e entrega de produtos e serviços, devendo cobrir, obrigatoriamente, acidentes pessoais, invalidez permanente ou temporária e morte. Parágrafo único. Na hipótese de o entregador prestar serviços para mais de uma empresa de aplicativo de entrega, a indenização, no caso de acidente, será paga pelo seguro contratado pela empresa para a qual o entregador prestava o serviço no momento do acidente.” (grifo nosso)
[3] https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=2244218
[4] https://www.revistaapolice.com.br/2021/02/startups-oferecem-seguro-acidentes-pessoais-para-entregadores/
[5] https://entregador.ifood.com.br/quero-fazer-parte/seguro-acidentes-pessoais/
[6] https://www.revistaapolice.com.br/2020/04/entregadores-do-ifood-contam-com-cobertura-de-covid-19-no-seguro-de-vida/
[7] https://entregador.ifood.com.br/covid-19-nossa-entrega/seguro-de-vida-ifood-em-casos-de-covid-19/