Desde a sua edição, exatamente em 17.12.2018, o enunciado da Súmula 620 do Superior Tribunal de Justiça causa calafrios em muitos profissionais intérpretes da lei e estudiosos do direito securitário, grupo no qual, eu particularmente me incluo.

E digo que são até singelas, no sentido de serem facilmente percebidas, as razões dessa indignação. Ora, o enunciado que autoriza o pagamento de cobertura securitária decorrente de sinistro causado por embriaguez do segurado, em primeiro lugar, e antes de tudo, conflita com texto expresso de lei federal[1] em vigor, que tipifica a embriaguez ao volante como crime.

Esse sempre foi, ao menos para mim, o motivo de maior incompreensão da prevalência – até aqui – do enunciado desta súmula, para além, é claro, de certo modo, andar na ‘contramão’ de um forte e legítimo movimento social de tolerância zero àquele que dirige alcoolizado, dadas as razões óbvias da repercussão e consequências de tal ato.

Além disso, a embriaguez, na qualidade de ato ilícito, caracteriza-se como causa de excludente do dever de indenizar, prevista expressamente nas cláusulas estabelecidas nos contratos de seguro, e que regem relações/deveres e direitos recíprocos de Segurados e Seguradores.

E, se é verdade que nem todo ato ilícito configura crime, a premissa contrária não é verdadeira, já que todo crime tem em si um ato ilícito. Eis aí, mais este forte motivo qualificador a não se tolerar/tutelar a embriaguez ao volante (independentemente de qualificadores, com ou sem vontade/intenção), em que circunstância seja, como premissa “sine qua non”.

E não é só. Esse enunciado, tão controverso, refletiu no momento de sua edição a percepção de contrariedade ao que vinham decidindo os Tribunais, o que, aos processualistas, antes de todos, é motivo de incoerência, já que o enunciado de uma súmula deve refletir entendimento mais que consolidado e no sentido de sua consolidação. Não o contrário.

O fato é que, sobremaneira por tais evidências inafastáveis, o enunciado da Súmula 620 do STJ vinha/vem sofrendo desde o nascedouro, questionamentos legítimos, inclusive comportando análises com temperanças em decisões dos Tribunais de segundo grau da Federação, no entanto, a maioria, ainda, fundamentada no contexto da dinâmica do acidente em conjunto com o elemento embriaguez[2].

Não por outra razão, graças a persistência dos operadores do direito ao insistirem na condução da dialética deste tema calcado nesses fortes e legítimos argumentos, agora, em abril de 2022, a 4ª Turma do Superior Tribunal de Justiça mobilizou-se ao julgar o recurso de Agravo interno no Agravo em Recurso Especial 1.773.128 / PR[3], convertendo-o em Recurso Especial e bem assim, afetando-o ao julgamento da 2ª Seção do Superior Tribunal de Justiça, para reapreciação, sob justificativa do Relator Ministro Luís Felipe Salomão, acompanhado pelos demais Ministros daquela sessão, de que o tema é ainda muito conflitante.

Nós, da Carvalho Nishida, seguimos acompanhando esse e outros debates essenciais a escorreita aplicação dos institutos de direito material e processual, acreditando que, de fato, nesta temática, há necessidade de revisão e melhor leitura do contexto para uma reedição do enunciado ou mesmo, e apenas, a revogação do texto sumular atual.

 

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[1] Lei 9.503/97, o Código de Trânsito Brasileiro, em seu art. 306, inserido na seção I, do capítulo XIX – intitulado dos crimes de trânsito, cuja literalidade do referido artigo dispõe: Conduzir veículo automotor com capacidade psicomotora alterada em razão da influência de álcool ou de outra substância psicoativa que determine dependência: Penas – detenção, de seis meses a três anos, multa e suspensão ou proibição de se obter a permissão ou a habilitação para dirigir veículo automotor.

[2] É exemplo: Apelação 1004615- 97.2019.8.26.0568 proveniente do TJSP, 28.04.22

[3] https://processo.stj.jus.br/processo/revista/documento/mediado/?componente=COL&sequencial=151535101&formato=PDF&formato=undefined