Lembro-me, ainda hoje, do sentimento de ‘orfandade legislativa’ que me gerou a entrada em vigor do Código Civil de 2002 (então chamado de ‘novo’ código civil, e lá se vão quase 20 anos!), ao detectar a ausência de correspondente legislativo do art. 1460[1] do Código Civil de 1916.

Muito embora, é verdade, que da interpretação literal e sistêmica do conjunto normativo do direito do Seguro no Código Civil de 2002, sem dúvida alguma, seja possível extrair esta mesma condição de legitimidade do Segurador à limitação do risco, a exemplo da dicção dos arts. 760 e 776, segundo os quais o legislador afirma textualmente que “a apólice ou bilhete de seguro… mencionarão os riscos assumidos[2]e “o segurador é obrigado a pagar… o prejuízo resultante do risco assumido[3]”.

No entanto, os que vivenciam o tema no dia a dia dos Tribunais bem sabem que a “aparente” tranquilidade na dicção legislativa não suplanta os inúmeros debates processuais na defesa das negativas dadas pelas Seguradoras, de forma legítima, quando ausente de fato, na apólice, a contratação de determinado risco pelo segurado, ou mesmo caracterizada causa excludente de determinada cobertura.

Fator que apimenta esta discussão, na grande maioria das vezes, é a relação de consumo. Ou seja, “ainda que” ou “em que pese” a constatação quase sempre presente da condição de vulnerabilidade do segurado, como consumidor, pode ou não e como o faz o Segurador nesta dinâmica da particularização e limitação do risco?

Sem dúvida alguma, esse “pormenor” da discussão nunca vem desapegado do contexto em debate.

E, prova de que o tema embora não seja novo é de recorrente discussão, é a recentíssima decisão do Superior Tribunal de Justiça, ao julgar o REsp º 1.358.159 – SP[4], de junho de 2021.

Nesta oportunidade a conclusão foi a seguinte: “a cláusula contratual que circunscreve e particulariza a cobertura securitária não encerra, por si, abusividade nem indevida condição potestativa por parte da seguradora, ainda que analisada – de forma puramente abstrata – pela ótica do Código de Defesa do Consumidor”.

A hipótese em discussão dizia com a restrição, pela Seguradora, de situações específicas atreladas à cobertura de ‘invalidez por acidente’ que, quando decorressem de circunstâncias particularizadas, tipificadas como excludentes, a exemplo de “perturbações e intoxicações alimentares de qualquer espécie, bem como decorrentes da ação de produtos químicos, …”, “choque anafilático e suas consequências”, não gerariam o direito àquela cobertura.

E, com bastante propriedade, a decisão que afastou a abusividade desta limitação fundamentou-se na própria natureza do contrato de seguro, que por excelência estabelece a prévia delimitação dos riscos cobertos, inclusive como condição sine qua non de viabilidade do próprio equilíbrio atuarial entre o valor a ser pago pelo consumidor (o segurado) – prêmio do seguro – e a indenização securitária de responsabilidade da seguradora, na hipótese de ocorrência do sinistro.

O julgado ainda enaltece a tríade fundamental do contrato de seguro – o risco, a mutualidade e a boa-fé, reforçando a significância destes três elementos, pilares que são deste negócio jurídico, conceituando-os: “O risco relaciona-se com os fatos e as situações da vida real que causam probabilidade de dano e com as características pessoais de cada um, aferidas no perfil do segurado. A mutualidade, por sua vez, é oriunda da solidariedade econômica entre os segurados, em que é formada uma poupança coletiva ou um fundo, objetivando cobrir os prejuízos que possam advir dos sinistros. É a distribuição dos custos do risco comum (socialização das perdas). Ademais, a contribuição de cada um será proporcional à gravidade do risco a que está sujeito, obtida por meio de dados estatísticos e cálculos atuariais. Por último, a boa-fé é a veracidade, a lealdade, de ambas as partes, que devem agir reciprocamente isentas de dolo ou engano. E, no seguro, a boa-fé assume maior relevo, pois tanto o risco quanto o mutualismo são dependentes das afirmações das próprias partes contratantes”[5].

Tais premissas foram lançadas para que, ao final, houvesse a conclusão de que se se permitisse ao judiciário excluir cláusula contratual delimitadora de cobertura securitária, fatalmente se ocasionaria um cenário de desequilíbrio econômico-contratual e, bem assim, dar-se-ia causa a que o desvio de risco passasse a ser suportado para além da Seguradora, pela coletividade dos segurados.

Decisões como esta, a nosso ver, que enaltecem os pilares deste negócio jurídico, como essência de sustentação desta modalidade contratual, merecem ser festejadas e acima de tudo debatidas, de modo a reforçar, ao final, não só a sustentabilidade do contrato de seguro, mas o respeito ao próprio direito material positivo.

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[1] Art. 1.460. Quando a apólice limitar ou particularizar os riscos do seguro, não responderá por outros o segurador.

[2] Grifos nossos.

[3] Grifos nossos.

[4]https://processo.stj.jus.br/processo/revista/documento/mediado/?componente=ITA&sequencial=2062944&num_registro=201202615262&data=20210616&peticao_numero=-1&formato=PDF

[5] REsp 1340100/GO, Rel. Ministro RICARDO VILLAS BÔAS CUEVA, TERCEIRA TURMA, julgado em 21/08/2014, DJe 08/09/2014.